Deixe-me ver: para usar meu cartão telefônico e acessar a AT&T, estando em San Jose, Costa Rica, devo discar 08000114114. Como estou no hotel, primeiro preciso obter uma linha e para isso é preciso discar 9. Discar, na verdade, é força de expressão já que hoje não se disca mais nada e sim apertam-se teclas. Viva o progresso; o que antes era demorado girando o dial do telefone e necessitando de ajuda da telefonista agora é rapidíssimo. Apertam-se teclas e presto; começa-se a falar com a pessoa do outro lado, esteja ela no próximo quarteirão ou no outro lado do mundo.
Vou então fazer uma ligação bem rápida; estou de saída para o trabalho e em uma hora irão me apanhar no saguão do hotel. Sem problemas, pois afinal estamos no século 21.
Muito bem, vamos lá: aperto o 9 para dar linha; aqui está! e depois 0800… deu sinal de ocupado no meio do número. Como assim? De novo digito 9, linha, e 0800011… ocupado outra vez; 9, linha e 080001… ocupado. Agora já está começando a perturbar, pois esse telefone dá sinal de ocupado sem que ao menos se termine de teclar o número todo. Isso está errado, pois na verdade a sequência é apenas um contato com o computador central da telefônica internacional da AT&T para ligações com cartão e nunca dá sinal de ocupado. São oito da manhã e devido ao fuso horário tenho uma hora no máximo para completar a ligação; além de que preciso descer, pois como disse, vão me buscar às nove lá em baixo no saguão. Insisto em 9, linha e umas cinco tentativas mais, sem conseguir chegar ao final do número. Finalmente 9, linha, 08000114114 e tocou! Disse-me então o computador :“AT&T. Please dial the number you are calling!” (“favor discar o número que deseja chamar”), eu então comecei a discar para o Brasil: 011-55-1… caiu a linha. Comecei de novo: 9, linha 080011… ocupado e etc, etc, etc. Estaca zero.
Uns oito eteceteras depois cheguei ao ponto onde havia parado e consegui discar o número todo. O computador então voltou: “please dial the authorization code”, ou seja, eu agora teria de teclar um código de autorização de 14 dígitos antes que a ligação se iniciasse, e isso num telefone com linha crítica como aquela que dava ocupado ou caía a todo o momento. Consegui digitar todos os 14 números sem cair. Tocou e entrou o computador dizendo que a ligação não poderia ser feita para aquele número e que eu verificasse e tentasse de novo. Acho que a quantidade de números que se tem de teclar é tanta que dá uma indigestão no sistema telefônico; por outro lado dizem que os computadores conseguem absorver um montão deles em fração de segundo. Será que não seria melhor pedir auxilio à telefonista? Será que ainda existe alguma por aqui?
Oito e meia; ainda havia tempo, assim verifiquei o número e vi o que estava cansado de saber, que o número para onde eu já havia ligado trocentas vezes estava certo. Computador cretino! E recomecei o ritual: 9 para dar linha e depois 08000… deu ocupado. De novo 9, linha e 0800011411… ocupado outra vez. Consegui mais números dessa vez; quem sabe se discasse mais depressa enganaria o computador e antes que ele maldosamente me enviasse um sinal de ocupado eu já teria conseguido meter todos os números… vou rir na cara dele. Lá vai: 9, linha e 080… ocupado. Droga ! Ele leu meu pensamento e por isso desligou mais rápido dessa vez. Insisti para cansar o computador e deu certo. Muitas tentativas depois consegui chegar ao número e assim comecei 011 55 11 2… ocupado. Mas como ocupado? Nem terminei e vou ter de começar tudo de novo.
Comecei o ritual, repetindo a mesma coisa para chegar ao ponto de digitar o número fatídico. Enquanto isso pensava nos tempos de infância e pré-adolescência quando ia passar férias na fazenda perturbando meus tios e primos.
A fazenda fica em Laranjal Paulista, interior de São Paulo, por onde se chegava depois de uma grande aventura pelas estradas de então. Estamos falando da década de 60 e como eu saía de Santos, litoral Paulista, tinha de inevitavelmente passar por São Paulo. Ao subir a serra meu pai cismava de tomar um famoso atalho por uma tal de Estrada do Vergueiro para encurtar a viagem e, depois disso, sempre nos perdíamos, atrasando a passagem por São Paulo entre uma e duas horas. Finalmente chegando à rodovia Anhanguera em “ótimo humor”, aguardava-nos, horas depois, uma nova armadilha: é que o percurso incluía passar por uma cidade de nome Porto Feliz. Porto Feliz era o segundo porto mais infeliz do percurso – o primeiro era São Paulo – pois aí também nos perdíamos. Até hoje me lembro de todas as voltas pelas ruas e vielas daquela cidade de tanto que passávamos por elas na tentativa infrutífera de continuar viagem. Lembro-me de uma vez ter de abrir porteira daquelas de pasto de bois. Foi quando estavam construindo partes da rodovia e os desvios incluíam passar por lugares facilmente perdíveis aonde se chegava a trilhas sem saída e cercados de criaturas com ar apático e falando mu.
Deixe-me fazer uma pausa para as últimas notícias, pois consegui teclar o número todo. Atenderam e era engano. Devo ter pressionado alguma tecla errada. Demônios do inferno, tenho de começar tudo de novo!
Continuando a grande jornada para a fazenda, depois do labirinto de Porto Feliz, ainda tínhamos pela frente a tortura das crianças: o trecho entre Tietê e Laranjal. É que o projetista dessa estrada devia ter ódio de crianças e assim certificou-se de ela ficaria cheia de curvas mesmo que cortasse apenas pastos e não montanhas. O resultado era fácilmente alcançado já que as crianças sempre ficavam enjoadas e vomitavam… O que implicava em paradas não programadas em outros portos infelizes e mais atraso na viagem. O percurso culminava ao se chegar à entrada do caminho para a Fazenda Estrêla, do meu tio, a poucos minutos após a passagem pela linha do trem (a famosa Sorocabana), e depois de uma curva fechada à esquerda na estrada, curva essa imediatamente na saída da ponte sobre o rio Sorocaba. Essa curva foi feita com o objetivo de proporcionar uma distração aos lambaris lá em baixo já que periódicamente carros, ônibus e caminhões erravam a curva e iam se refrescar nas águas do rio. Note-se que, para facilitar o mergulho, essa ponte ficava no fim de uma descida.
Chegando à entrada da fazenda nos preparávamos para a última emoção, principalmente se estava chovendo ou havia chovido há pouco tempo. O caminho antigo seguia uma trilha pela parte norte da fazenda cujo lamaçal sempre nos atolava e assim chegávamos à fazenda via caminho da mangueira de ordenha das vacas e passando ao lado da casa do Gildo (o grande carpinteiro da fazenda e conhecido como “Girdo”, para quem se lembra), gloriosamente arrastados por um trator.
De volta ao meu trabalho no hotel, finalmente consegui ligar todos os números iniciais e em seguida o código do cartão. Entrou o computador: “não se pode completar a ligação para o número discado; verifique o número e disque novamente”. Comecei outra vez.
Na fazenda daqueles tempos, o telefone era algo misterioso. Em primeiro lugar ele havia sido colocado numa ante-sala onde ficava uma infinidade de gaiolas de passarinhos cujo objetivo era cantarem todos ao mesmo tempo quando algum infeliz tentava ouvir o que se falava no outro lado da linha. (Aviso que os passarinhos ainda estão lá até hoje, e isso em pleno século 21, mas o telefone foi mudado de lugar – afinal algum progresso!).
Voltando ao antro dos penosos, toda aquela balbúrdia, que ja era suficiente por si só para testar a acuidade auditiva dos adultos e acelerar sua deterioração, se aliava aos barulhos e chiados do telefone. Isso sem contar a vingança da Araponga, um pássaro grande, corpo branco com a cara verde (de esforço para gritar – ela não canta; grita! E tem gente que ainda compra o estafêrmo) que solta um grito agudo de rebentar tímpanos nas horas mais inconvenientes. Com o tempo descobri que a algazarra se intensificava quando se falava ao telefone; com certeza era de vingança por estarem presos. Eu sabia que era de propósito porque ao se olhar para eles, eles desviavam o olhar e eu jurava que curvavam ligeiramente o bico num sorriso de Pica Pau do desenho animado quando apronta alguma sacanagem.
O aparelho era desses de pescoço com a parte para o ouvido separada e presa por um fio preto e peludo (o isolamento era de pano) – igual àqueles dos filmes do Gordo e o Magro dos anos 30. Não possuía lugar para discar e sim uma manivela no lado direito de uma caixinha de madeira na base do telefone, que a pessoa girava muitas vezes até conseguir a atenção da telefonista de Laranjal. Esta se ocupava em enfiar pinos ligados a uns fios que saiam de todos os lugares e eram todos vermelhos, em dezenas de buracos situados em um painel à sua frente. Nunca entendi como isso funcionava. Os fios vermelhos, todos iguais e sem etiqueta, eram enfiados nos buracos no painel nas mais diversas direções e sem uma ordem aparente; como se estivesse trançando uma rede. No final ficava um emaranhado de dar inveja a gato solto em um deposito de linhas. Com certeza vem daí a expressão “linha cruzada” pois era exatamente o que se via. E não é que, no final, dava certo?
Quando a telefonista atendia, o processo era mais ou menos o seguinte:
- Aqui é Fazenda Estrêla um oito, quero uma ligação para 42856 em Santos! (Nao estranhe o numero curto, caro leitor, isso de DDD e outros prefixos era coisa totalmente desconhecida na época; estamos falando dos anos 60!).
- Pois não; vou ver se há demora e já lhe informo!
Desliga-se o telefone e depois de uma “breve” pausa que podia facilmente chegar a mais de uma hora, ele toca.
- “Alô?”
- “É a telefonista para avisar que a demora para Santos é de 6 horas!”
- “Obrigado, pode fazer a ligação!”
Seis horas depois mais ou menos 2 (quase sempre mais do que menos) o telefone toca novamente
- “Alô?”
- “Sua ligação para Santos! Diz a telefonista”
- “Obrigada! Responde minha tia Lilita (carinhoso para Lucília)”
Começa então o “diálogo”:
- Zzzzzzzzz(estática)zzzzz alô? Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzz Guidinha? Zzzzzzzzzzz ? Pergunta minha tia.
- Zzzzzzzzz alô? Zzzzzzzzzz alô? Pergunta, por sua vez minha mãe (Guidinha vem dos tempos de infância para Margaridinha…).
- Alô? Zzzzzzzzz Guid zzzzzzzzz aqui é a Lili zz zzz zz z zzzzzzzzzzzzzzzzz !
- Alô? Alô? Zzzzzzzzzz quem fala? Zzzzzzzzzzzzzzzz ?
- Alô? Guidinha, aqui é a zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz quem está falando?
- Alô? Zzzzzzzzzzz quem fala?
- Zzzzzzzzzzz Guidinha, é você? Aqui é a Lilita, da zzzzzzzzzzzzz Estrêla!
- Alô? É a zzzzzzzzzzz Lilita? Aqui é a Guidinha zzzzzzzz não estou ouvindo nada! Voce zzzzzzzzzzzzz?
- Zzzzzzzzzzz Guidinha? Zzzzzzzzzz fala mais alto; a ligação está horrível zzzzzzzz; quem está falando?
- Lilita? Zzzzzzzzzzzzzzz fala mais alto! A zzzzzzzzzzzz está horrível zzzzzzzz
- Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz ?
- Zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz !
- Zzzzzzzzzzzzzzzzzz ?
- Zzzzzzzzzzz !
- Zz?
- Z!
E assim, depois de uns dez minutos de tentativa de introdução, finalmente conseguia-se saber quem estava nos dois lados da linha e então as duas irmãs começavam a conversa. Gastava-se meia hora no telefone para 10 minutos de mensagem; mas conseguia-se falar. É que, nessa época, as pessoas iam logo ao assunto e não perdiam tempo ouvindo estática pelo telefone. Vamos admitir que elas eram muito práticas.
Enquanto isso, continuo às voltas com a minha ligação. Tento a telefonista do hotel. Existe uma! Não, ela não pode fazer a ligação para mim. E só ligar 9 e digitar o número informa ela, certamente assumindo que eu sou um débil mental ou analfabeto e que não consigo ler essa informação que está impressa no telefone à minha frente.
Volto ao castigo. Tenho que digitar 9 seguido de 11 dígitos para AT&T, mais 7 dígitos para acessar o país e a cidade no Brasil, seguidos dos outros 7 do número local e, logo após solicitação do computador, mais 14 dígitos do meu código do cartão. Tudo isso para atender uma secretária eletrônica e pedir que eu digite o ramal… Como são sinais sonoros e tantos, dá até para se tocar uma musiquinha.
Com sorte, depois de muito tempo, consegue-se completar todo o processo para então ouvir da secretária (agora um ser humano, bem entendido) que a pessoa com quem você precisava falar com urgência, não pode esperar e teve de sair para uma reunião, almoço, visita à cliente ou qualquer outro motivo. Ela então sugere: porque da próxima vez o senhor não tenta ligar mais cedo? Não costumo responder a esse tipo de pergunta porque a filosofia zen sugere que, nos momentos de ímpetos assassinos, ficar calado é melhor…
Mas no momento ainda não consegui completar o ciclo e chegar ao ponto de diálogo conforme escrevi acima; sigo, portanto, insistindo:
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 011551139342… ocupado
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934…. Ocupado
Disco 9 - linha – 080… ocupado.
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934242 – AT&T pede para digitar o código – 86502157684136 – mensagem da AT&T – toca o telefone desejado – interrompe com uma mensagem de que os troncos estão congestionados
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934242 – AT&T pede para digitar o código – 86502157684136 – mensagem da AT&T – toca o telefone desejado – interrompe com uma mensagem de que os troncos estão congestionados
Disco 9 - linha – 080001141… ocupado.
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 011551139342… ocupado.
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934242 – AT&T pede para digitar o código – 86502157684136 – mensagem da AT&T – toca o telefone desejado – atendem mas é engano; o número é completamente diferente do discado.
Disco 9 - linha – 08…….. ocupado
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934242 – AT&T pede para digitar o código – 86502157684136 – mensagem da AT&T – ocupado.
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934242 – AT&T pede para digitar o código – 8650215…….. Ocupado.
Disco 9 - linha – 08000114114 - mensagem da AT&T e pede para digitar o número – 01155113934242 – AT&T pede para digitar o código – 86502157684136 – mensagem da AT&T – o telefone desejado começa a tocar, alguém atende e, imediatamente, desliga – sinal de ocupado. Desgraçado ! Grito indignado.
Nove horas da manhã; tempo esgotado. Saí do quarto com raiva.
Nota: consegui fazer a ligação três dias depois. Perguntaram-me porque nao liguei antes…
Bons tempos os de antigamente em Laranjal Paulista; ao menos as ligações se realizavam no mesmo dia.
Eduardo Ulhoa Cintra - 8 de Marco de 2002
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5 comments:
Ai, que nervo! Eu teria desistido na quinta vez! (no máximo).
Você sabe contar bem uma história, Eduardo.
Muito bem mesmo.
Nem sempre a tecnologia está a nosso favor, veja só!
Abraços!
Eu sempre amei ouvir suas estorias da epoca de fazenda, eh um mundinho tao diferente!!! Essa do telefone tb sempre foi minha favorita, ja pensou isso acontecendo hoje em dia, vixe! Eu mesma teria um treco.
E olha pai, ATT nao esta com nada. Pega um blackberry internacional da Verizon que tenho certeza absoluta que voce nunca teria problemas de coneccao.
bjos, Lu
Eu também não teria tido esse sangue de barata... pararia talvez na 6a ou 7a tentativa, no intuito de manter minha sanidade mental!
E se era melhor na época do telefone da fazenda (que sinceramente não sei qual é o modelo) o que dizer da época das cartas, onde não se estressava com a chegada da notícia e com certeza não se perguntava "por que não enviou antes", porque afinal, a culpa era do correio... rsrs
Boa semana.
Mariel e Lucia Soares, eu tinha que insistir, afinal acabou se tornando uma questao de honra, porem no final nao consegui. Mariel, esse telefone de pescoco eh o que voce ve nos filmes dos anos 30... Ja assistiu a algum filme do gordo e o magro! vale a pena.
Abracos
Eduardo
kkkkkk
Shrek, seu danado, tive que ler este post imeeeeeeeeenso em 3 dias.
Você não tem jeito!
Mas, foi bom, ri muiiiiiito no final e vejo que não adiantou tanta tecnologia depois da dona telefonista. hehe
Agora me responde: você xinga em português ou inglês?!
Qual das duas línguas você acha que fica mais enfático o palavrão?
bjs cariocas
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